Maria e João Cortez de Lobão: A arte, como a felicidade, é para partilhar
Casal viu este ano a sua fundação reconhecida e quer abrir em Lisboa um centro para mostrar a colecção de arte que tem vindo a reunir. Portugal, dizem Maria e João Cortez de Lobão, deve olhar sem complexos para a sua história e promover o conhecimento.
Complementaridade é regra quando se fala do casal Maria e João Cortez de Lobão e “partilhar” é verbo obrigatório na família que construíram, orgulhosamente ligada à terra e ao Alentejo.
Vivendo entre Londres, onde este economista de formação trabalha no mercado financeiro e é sócio de uma gestora de patrimónios, e Lisboa, onde tencionam vir a abrir um centro dedicado às artes e ao conhecimento, Maria e João Cortez de Lobão, ambos com 59 anos, viram este ano reconhecida a Fundação Gaudium Magnum, entidade que criaram para enquadrar o trabalho que há anos desenvolvem nas áreas da cultura, da ciência, da educação e do apoio social.
Gaudium Magnum, esclarece Maria, porque à fundação que define como “um sonho, uma ousadia, uma evolução natural num projecto de vida” que inclui oito filhos entre os 8 e os 30 anos e uma herdade com 700 hectares de olival intensivo em Serpa, corresponde, como o próprio nome indica, uma grande alegria.
“Sempre passámos aos nossos filhos a ideia de que é preciso trabalhar para construir o futuro e que esse trabalho feito com entusiasmo, associado a outras coisas fundamentais, como a família, deve trazer-nos felicidade. Esta fundação é a nossa forma de partilhar a felicidade que vamos vivendo”, diz.
Maria Cortez de Lobão está habituada a arregaçar as mangas em obras de beneficência ligadas à igreja — “na nossa educação e na que damos aos filhos está e sempre esteve uma matriz cristã, católica” — e no Alentejo, onde fica a Herdade Maria da Guarda, uma propriedade que pertence à família de João desde 1779, implantada num território onde já os romanos faziam azeite.
O casal assumiu a herdade que hoje tem 1,3 milhões de oliveiras quando João resolveu trocar a banca pela agricultura, intuindo que era esse o desejo do seu pai. “Os meus irmãos [tem cinco] não queriam deixar as suas profissões e o meu pai, mesmo sem o dizer, gostava que a herdade continuasse na família. Nós já tínhamos mudado de vida mais do que uma vez e resolvemos correr o risco”, explica o economista que começou por ser jornalista (no Semanário e no Expresso, onde durante anos editou o caderno de Economia), que entrou para a banca nos Estados Unidos, para onde se mudou com a família para tirar um curso no final da década de 1990, e que regressou a Portugal a convite do BCP pouco tempo antes do ataque às Torres Gémeas, onde, aliás, trabalhava.
De início, cuidar da herdade implicava estar presente, aprender muito, ir para o campo, acompanhar o plantio ou a instalação do sistema de regra, mas, 15 anos passados, a estrutura profissionalizou-se com colaboradores, “que é como tem de ser”. Na herdade, como na fundação, tudo tem de ser feito com profissionalismo, defende. “É claro que nos dá muito prazer que a família se envolva em tudo isto, mas sempre com gente de fora com quem todos possamos crescer.”
Ligados à terra
A casa agrícola produz anualmente dois milhões de quilos de azeite, praticamente todo para exportação a granel, e emprega 40 pessoas que João e Maria conhecem bem. É precisamente na Maria da Guarda que começa a responsabilidade social da fundação, diz Maria Cortez de Lobão. Ao apoio que dá a quem nela trabalha, seja em prémios pelo nascimento de cada filho dos funcionários, seja no apoio às compras de supermercado das suas famílias, junta-se o trabalho com as instituições locais de solidariedade ou os bombeiros.
“Todos os anos doamos milhares e milhares de litros de azeite aos que nos procuram e ajudamos como podemos noutras áreas. Se os bombeiros precisam de uma ambulância nova, estamos lá. No Alentejo ainda há muitas carências e é preciso ajudar”, acrescenta com entusiasmo, explicando em seguida que estar ao serviço dos outros através da área social, da educação, da investigação e da cultura é o principal objectivo da Gaudium Magnum.
É também por isso que o casal quer abrir um certo de arte e conhecimento em Lisboa, onde possa expor a colecção de pintura que hoje tem dividida entre as suas casas de Lisboa e de Londres. A ideia, insiste Maria junto a um auto-retrato da francesa Élisabeth Louise Vigée Le Brun (1755-1842) e a uma pintura de José Malhoa que mostra uma velha mulher a fiar, é partilhá-la com os portugueses e com quem visita a cidade.
“Esta conversa a que assistimos entre a Vigée e o Malhoa na sala de estar da nossa casa pode acontecer com a mesma intensidade numa galeria”, diz. E, assim sendo, serão mais os enfeitiçados pela pintora da rainha Maria Antonieta, acrescenta João: “Este auto-retrato faz companhia. O olhar doce desta mulher prende, fala connosco.”
Uma herdade e um retrato
Foi precisamente com a obra de Vigée Le Brun que a colecção de Maria e João Cortez de Lobão deu o salto, explica o casal que sempre incluiu a arte — museus, galerias, feiras internacionais — nos programas de férias em família.
No ano e meio que passaram em Nova Iorque o interesse intensificou-se. “Nos Estados Unidos apercebemo-nos da vitalidade do mercado da arte, começámos a ir às exposições das leiloeiras e a ver obras que achámos que só havia nos museus. Aprendemos e divertimo-nos muito”, recorda João. “E foi assim que acabámos por crescer de forma acelerada neste mundo, muito graças a amigos que mantemos até hoje e que são galeristas ou curadores no Metropolitan e na National Gallery de Washington, que são dois mundos extraordinários.”
O casal frequenta o circuito da arte mais a sério desde que comprou o auto-retrato de Vigée Le Brun, em 2006, praticamente na mesma altura em que assumiu o controlo da Herdade Maria da Guarda.
Antes de qualquer aquisição, Maria e João procuram aconselhar-se com os amigos especialistas, apuram cuidadosamente a proveniência da obra, avaliam o seu estado de conservação e chegam a pedir pareceres. Mas, sobretudo, ouvem-se um ao outro: “Nunca comprámos nada de que um de nós não gostasse. O que trazemos para casa tem de dizer alguma coisa aos dois”, garante João. E, para que isso aconteça, tem de haver atracção. “Há uma parte emocional fortíssima em tudo isto, mesmo hoje, quando é preciso olhar ao que já temos antes de comprar o próximo quadro”, acrescenta Maria.
No futuro, a colecção, que tem cerca de 100 obras de artistas estrangeiros como Luca Giordano, Bartolomeu Manfredi, Mariotto di Nardo, Sigmund Holbein ou Ventura di Moro, mas também de portugueses (ou a trabalhar em Portugal) como Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos, Álvaro Pires de Évora, Gregório Lopes e Diogo Contreiras, poderá ser vista num espaço a que os visitantes se poderão dirigir com frequência, como quem marca um almoço com um amigo, só para pôr a conversa em dia.
Maria explica que gostariam que o novo centro viesse a combinar a vertente expositiva com a investigação, promovendo o debate e uma certa “inquietação”. Não sabem ainda que modelo seguirá — o conselho de curadores da fundação, onde cabem três gerações e há pessoas mais novas do que o filho mais velho do casal, está a estudar o assunto — mas têm já uma certeza: “Tem de ser um lugar onde as pessoas se sintam bem, mas também disponíveis para serem surpreendidas por uma imagem, por uma ideia.”
Um estado de “desassossego bom” pode levar a grandes descobertas e a momentos de puro prazer, garante a coleccionadora. “Uma paisagem nocturna com o detalhe e a intensidade da que temos do Cavaleiro d’Arpino [S. Jerónimo em Penitência, 1610-1620] pode inquietar, mas nunca se esgota. O movimento, o impacto e a força da Sagrada Família de Nosadella, com o Menino Jesus a brincar com o passarinho e S. José preocupado, ficam connosco.”
Como ficam os pedintes de Giordano que tanto cativaram Maria e que, só aos poucos, conquistaram João: “O lado tenebrista destas duas pinturas de Giordano, muito carregadas, não me atraiu, mas à medida que ia conversando com a Maria, tentando compreender porque a entusiasmavam tanto, deixei-me levar.”
Promover Portugal
Em Fevereiro de 2020, já com o centro em mente, Maria e João convidaram a italiana Candida Corvi para ser a curadora do livro de apresentação da sua colecção de arte ao mundo.
“Nos Estados Unidos apercebemo-nos da vitalidade do mercado da arte, começámos a ir às exposições das leiloeiras e a ver obras que achámos que só havia nos museus. Aprendemos e divertimo-nos muito.” João Cortez de Lobão
Corvi, galerista e gestora de colecções com um interesse particular nos grandes mestres da pintura antiga, convidou uma série de historiadores de arte para escreverem as entradas das obras seleccionadas para este “cartão de visita” — não inclui portugueses.
“Privilegiamos o profissionalismo e o rigor em tudo e, por isso, deixámos ao critério de quem sabe, embora a Maria tenha acompanhado tudo de perto e tenha feito sugestões”, diz o economista que, tal como a mulher, preside à fundação. “Mais tarde faremos um [livro] com os portugueses.”
Apesar dos convites que receberam de várias cidades em Portugal e no estrangeiro (Itália e Estados Unidos), os Cortez de Lobão decidiram mostrar a colecção em Lisboa e estão já à procura de “um espaço multifuncional que possa ser um veículo para mostrar o que Portugal é capaz de fazer, na arte, na ciência, na educação, para falar do que deu ao mundo em quase 900 anos de história”.
Há conversas a decorrer com o Ministério da Cultura, a câmara de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia e outras instituições para que o centro desta fundação com capitais próprios — “queremos que se sustente a si própria e que conte com outros mecenas, mas apenas para projectos muito específicos” — possa assegurar uma certa complementaridade em relação ao que já existe na cidade.
Promover Portugal como um país de cultura e de conhecimento, insistem Maria e João, é uma das metas. Um dos passos para a atingir é o apoio que o casal dará ao estudo e divulgação dos documentos relativos ao país que se encontram à guarda da biblioteca do Vaticano, dirigida pelo cardeal Tolentino Mendonça. Trata-se, sublinha João, de um acervo vastíssimo que inclui documentos religiosos, mas também obras literárias e cartas de marear, muitos deles hoje inacessíveis ao grande público.
Numa altura em que a história do país, em particular a que começa a forjar-se no começo do século XV, gera debates intensos e posições extremadas, há que olhar para o passado sem complexos, defendem os dois coleccionadores. “Não podemos concentrar-nos apenas nos defeitos, é preciso sublinhar o que de bom foi feito porque, sem passado, ficamos sozinhos”, diz João. “Os nossos maiores não foram perfeitos? Não. Ninguém é. Mas deixaram-nos este país, com todas as suas imperfeições e todas as suas coisas boas.”
Distanciamento e sentido crítico é o que ambos pedem aos alunos de liceu que apresentam ensaios nas candidaturas às bolsas que atribuem anualmente. “Há que olhar para o passado, reconhecer serenamente o que há de mau, assumir com a mesma serenidade o que há de bom, e continuar. Não se desiste da história sem se desistir do país e, do país, não podemos desistir”, diz Maria, lembrando que a arte ajuda a reflectir sobre uma infinidade de temas, desde logo o da condição feminina.
“Artistas como Josefa entram facilmente no debate actual sobre o papel das mulheres no mundo e sobre o reconhecimento que lhes é devido. Imagine-se o que foi preciso para que uma mulher vingasse como pintora em Portugal, sem casar, sem ter filhos, há mais de 300 anos… A Josefa mostra a qualquer jovem mulher hoje que o facto de uma coisa parecer impossível, não quer dizer que o seja. Difícil, sim, mas não impossível.” E as mulheres, diz com o seu sorriso aberto, acolhedor, estão habituadas a que as coisas lhes sejam difíceis.
Público, Lucinda Canelas
20 de Julho de 2021