A propósito de um protocolo assinado com o Museu de Arte Antiga, visitámos umas das mais valiosas coleções de arte em Portugal, um acervo de referência que deu origem também a uma fundação.
Vai-se com enorme expetativa. Volta-se com uma grande alegria.
Assim é o primeiro contacto com a (fabulosa) coleção de pintura antiga de Maria e João Cortez de Lobão. De Luca Giordano a Vigée Le Brun, de Baglione a Manfredi, de Van Dyck a Holbein, há muito para onde olhar e o que escolher. Uma bênção, um privilégio, ou ambas as coisas tratando-se de uma visita a casa do casal que de há uma dezena de anos a esta parte coleciona o que de melhor existe no mercado da arte antiga, no que à pintura diz respeito.
Gosto apurado e muitas certezas, qualidade acima da média, proveniência histórica clara e bem definida, estado de conservação perfeito, estes são critérios sagrados para a compra de um acervo de fazer inveja a muitos museus deste mundo.
Um fantástico autorretrato de Vigée Le Brun, uma das grandes obras da pintora oficial de Maria Antonieta, uma pintura maneirista de Nosadella, muito na linha de alguns continuadores de Rafael, um magnífico Govaert Flinck, que era um dos discípulos de Rembrand, belíssimos Luca Giordano, dois quadros que foram feitos para o equivalente à Santa Casa da Misericórdia de Nápoles, o Montepio, e destaque ainda para o notável “Apollo e Marsyas”, para uma natureza morta fabulosa de Giacomo Legi e de Antiveduto Gramatica, um notável Giovanni Baglione, um pequeno mas precioso Simon Vouet, uma pintura soberba de Bartolomeo Manfredi, além de um conjunto de primitivos muito interessantes que vão de Álvaro Pires de Évora a Mariotto di Nardo, ou também a um magnífico tríptico de Ventura di Moro, com uma dimensão não muito usual para a pintura italiana deste período, ainda da primeira metade do século XV, ou ainda um Giandomenico Tiepolo. Começámos assim, por estes artistas, mas podia ter sido de outra forma: Cavalier d’Arpino, Jan Joest van Kalkar, Hans Holbein, Van Dyck, Godfried Schalcken. Ou ainda de outra: José Malhoa, Domingos Sequeira, Baltazar Gomes Figueira, Estevão Gonçalves Neto, António Campelo, Vieira Lusitano, Josefa de Óbidos.
São muitos e grandiosos os pintores dignos de realce num acervo cuidado e construído sem uma propensão enciclopédica, a de ter um exemplar de cada um dos nomes relevantes da pintura internacional. Uma opção que se afigura “extremamente inteligente, porque há muito boa pintura de mestres que têm sido mais recentemente revalorizados que merece bem o valor que hoje se lhes atribui”, diz Joaquim Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, sobre a coleção Cortez de Lobão. A Casa das Janelas Verdes recebe agora, ao abrigo do protocolo assinado com o casal e a sua Fundação Gaudium Magnum, o “Martírio de São João Damasceno”, de Luigi Miradori, dito Il Genovesino, de 1648, uma pintura magistral, que sucede ao primeiro quadro daquela coleção a ter honras da Galeria de Pintura Europeia do MNAA, “Mulher numa Dispensa” de Giacomo Legi e de Antiveduto Gramatica. “Este quadro era conhecido de um catálogo do século XIX em que estava atribuído a Velasquez, além disso, tinha muitas outras obras atribuídas a Zurbarán. Trata-se de uma obra maior que vem ao de cima por esta reelaboração historiográfica que é feita muito recentemente. Este é um mestre, cuja primeira grande exposição data de 2017 e a segunda de 2019”, explica Caetano ao Observador. “O papel do colecionador é o de estar atento e conseguir obras que são de uma qualidade enorme, como esta, e que são aquilo que nós na gíria poderíamos dizer, bem compradas”, continua o diretor do Museu de Arte Antiga.
“Fazer uma coleção destas exige ter dinheiro para comprar as obras, milhões, mas, além disso, há esse gozo que é comum, mesmo a quem não as compra, ou a quem só as compra para o museu e compro pouco, de descobrir uma obra fantástica, uma obra que pode acrescentar qualquer coisa e nos pode transmitir um prazer imenso em olhar para ela. Se um produtor faz um vinho bom, normalmente não o quer beber todo, quer que se conheça aquilo que fez, e é um pouco isso”, compara.
“É isso mesmo”, garante Maria Cortez de Lobão. João, o marido, concorda e avança: “Quando o museu quiser comprar digam para eu ficar de fora, para não andarmos em concorrência. A ideia é trazer para Portugal. E o melhor é fazer de forma silenciosa e dizer até ao leiloeiro: ‘não queremos, não temos interesse’. E depois arranja-se alguém que possa tratar do assunto e faz-se um acordo lateral. Assim temos feito a coleção”. “Tem que se ter a prudência de estabelecer para si próprio um plafond, e também prioridades. Há coisas que fazem mais falta do que outras, às tantas estamos a duplicar caravaggistas sem necessidade”, exemplifica Maria. Na parede mesmo atrás de si, Jacob Gerritsz Cuyp, Carlo Saraceni, Govaert Flinck e Theodoor Rombouts fazem jus a uma galeria de retratos em pleno século XVII. Os olhos percorrem as paredes e param para ver a única tapeçaria da Série dos Feitos de D. João de Castro, “’Embaixada de Paz” Rei de Bisnaga ou Nizam apresentando-se a D. Álvaro de Castro que está em Portugal”, todas as outras, dez, encontram-se em Viena, no Kunsthistorisches Museum.
“Este ‘Martírio de São João Damasceno’ é uma história de paixão como quase todas. Aconteceu na TEFAF (The European Fine Art Fair, em Maastricht) já de há uma série de anos. Foi das primeiras vezes que lá fomos e já tínhamos alguns quadros, mas ainda não tínhamos um caminho propriamente definido. Passámos várias vezes à frente deste quadro e não conseguimos ficar indiferentes.
Foi um primeiro embate e, ao fim do terceiro dia de namoro, fomos à galeria e começámos a falar para ver se conseguíamos arranjar maneira de fechar o negócio”, conta João Cortez de Lobão, o economista que em 2006 deixou uma carreira promissora na banca para se dedicar à agricultura na Herdade Maria da Guarda, em Beja, propriedade da família há séculos, e a transformou na maior produtora de azeite biológico nacional.
“Gostamos sempre de deixar as coisas calar fundo, que elas falem no nosso coração. Há coisas pelas quais nos deixamos deslumbrar ao princípio e depois passamos em frente, há outras que no princípio são um grande choque e depois quanto mais vemos mais nos sentimos agarrados”, explica, por sua vez, Maria, ela filha do embaixador Leonardo Mathias. “Toda a coleção tem a ver com a nossa paixão. Não pretendemos saber tudo, porque não somos peritos no assunto e gostamos de saber a opinião de algumas pessoas, de várias e variadas pessoas, não é só uma visão, e tem que, à medida que as coisas se foram desenvolvendo, fazer sentido no corpo da coleção.”
O acervo do casal Cortez de Lobão “tem tomado uma dimensão de facto importante”, afiança Joaquim Caetano. “Há muito tempo que não se tem estado a fazer uma coleção de pintura antiga em Portugal desta dimensão. Temos que recuar aos colecionadores do século XIX para vermos uma só família com interesses em criar uma coleção assim. No final do século XIX há vários colecionadores importantes, o Burnay, por exemplo, antes dele os Palmela, que fazem compras e têm a ideia de constituir uma coleção, não só quadros para decorar a casa. No século XX temos o caso com escultura do comandante Vilhena, mas não houve coleções de pintura. Este é um fenómeno cultural muitíssimo interessante porque muitíssimo inusual na cultura portuguesa. No século XX, mesmo as coleções institucionais, de bancos e de fundações, voltaram-se quase todas para as artes contemporâneas.
Há alguns colecionadores interessantes mas mais voltados para aquilo que antigamente se chamava a arte da expansão, a arte oriental, porcelanas, mobiliário, coisas ditas indo-portuguesas, isso é o colecionismo mais normal. Houve o caso, que aliás foi doado ao museu, da Coleção Barros e Sá, uma grande coleção de ourivesaria profana, que foi logo pensada pelo colecionador como quase complementar à do MNAA, que era de ourivesaria religiosa, e pouco mais”, conta Joaquim Caetano. “Praticamente não há grandes coleções de pintura antiga. Há coleções importantes que vinham por herança e que foram mantidas durante algum tempo, mas mais por essa via do que de uma atitude proativa”, garante o diretor do MNAA. “Muitas coisas foram dispersas, apanhámos algumas coisas no estrangeiro que já tinham sido de famílias portuguesas”, revela João Cortez de Lobão.
E como é que tudo começou? “Temos a sorte de vir de famílias onde a arte fazia parte do dia a dia, a gente habitua-se a conviver, nem percebe o que é, mas aquilo vai informando a nossa inteligência, o nosso imaginário, o nosso olhar. Casámos e começámos como todos os casais com as paredes vazias, um colchão no chão e vai-se construindo. À medida que íamos construindo, pensámos é uma pena ter uma parede vazia, embora não desgostemos de paredes vazias, porque sou muito minimalista, ninguém diria. Depois aparece qualquer coisa que nos fascina, que nos seduz, compramos, depois compramos outra, será que vale a pena, ah esta então é tão bonita”, relata Maria Cortez de Lobão. “Estamos sempre de acordo na fase final de aquisição, não necessariamente no início, estou a lembrar-me de um ou dois quadros em que ou eu ou a Maria não tínhamos a mesma paixão. Mas, quando não chegamos a nenhum entendimento, deixamos passar também. A ideia é ser uma coleção dos dois em que há uma força comum, uma paixão comum pela obra”, explica João Cortez de Lobão.
E porquê a pintura antiga? “Quando começámos neste processo de ir aos museus, de ver coisas, fomos ver de tudo e vamos ver de tudo, mas progressivamente a pintura antiga falou-nos mais, contou-nos mais, deu-nos mais respostas à problemática da vida do que talvez a arte contemporânea, que, acredito, reflete bem o momento que estamos a viver, que é um momento de rutura, de passagem epocal, nestas passagens há imensas dores, imensos atritos. A pintura antiga que, como se vê, também não é só temas religiosos, veja-se outro Luca Giordano, um tema mitológico, é “Apollo e Marsyas”, o grande despique para saber qual deles é o mais belo. E, lá está, a mitologia a falar das problemáticas humanas de todos os tempos”, assegura Maria.
Caetano avisa: “O Luca Giordano não é o Ribera (1591-1652), mas é um pintor fabuloso, um grandíssimo pintor, era um talento da mão, que o pai, o pintor Antonio Giordano, tirou da escola aos seis anos de idade, razão pela qual ele era quase analfabeto, embora gostasse muito de citar coisas em latim e pedir a alguns poetas para lhe escreverem temas. O pai põe-no imediatamente a trabalhar na oficina, até que o pobre do Luca Giordano resolve casar sem autorização do progenitor que não queria que ele fugisse. Para arranjar dinheiro para o casamento, tenta vender uns quadros a um marchand holandês ou flamengo, que não lhos compra dizendo que ele ainda não é um pintor a sério para ele lhos comprar e ele não faz mais nada, faz dois Ticiano e dá a uma velhota para ir vender ao marchand que lhos compra logo. Ele fica com o dinheiro e depois acaba o pai (conhecido por fazer Riberas) a trabalhar na oficina do filho. Curiosamente, há uma carta de Luca Giordano para um marchand de Veneza, onde ele, muito indignado, já depois da morte do Ribera, diz que sabe que estão a chegar Ribera a Veneza que não são feitos por ele próprio, Luca Giordano”.
“Nestas nossas viagens pela Europa e muito também pelos Estados Unidos, apercebemo-nos de que ao lado das coleções oficiais dos museus de Estado, surgiam outras coleções que nunca são vistas como concorrentes mas sim como complementares, como dando a mão, como beneficiando-se umas às outras. Em regra, até estão relativamente próximas fisicamente umas das outras. O exemplo mais acabado disto é, em Madrid, o Prado e o Museu Thyssen, é só atravessar a rua. Em França há imensas coleções assim, Itália é um caso excecional, de facto, é preciso é ir aos palácios, que estão lá todas, a coleção oficial até nem é assim muito importante, porque as coisas boas estão é nas casas privadas. Nos EUA, temos o museum mile, onde tudo aquilo convive e se beneficia mutuamente”, reflete Maria, imaginando a sua coleção em Lisboa, perto até do Museu Nacional de Arte Antiga, com o qual tem vindo a estabelecer protocolos de empréstimos. “A ideia é procurar um espaço onde a gente possa centralizar as coisas e dar um bocadinho mais vida àquilo que temos, porque se não em casa, apesar de ser grande, não cabe tudo. Do outro lado da rua do MNAA se possível para podermos conversar mais”, avança João Cortez de Lobão. “Se pudermos fazer uma coisa que beneficie todos ficamos tão contentes. Um público ajuda sempre a criar público”, adianta ainda Maria, desejosa de poder mostrar o acervo que tem vindo a juntar.
“Quando a gente tem oito filhos, a necessidade de partilha faz parte do ADN, habituamo-nos a partilhar porque não há outra maneira de viver. Quando temos uma coisa que nos dá tanto gosto, que alegria que é encontrar alguém que também se entusiasma, descobre coisas que nós ainda não vimos. É tão bom quando nos juntamos e vivemos aquilo que de bom há na vida uns com os outros, sabe tão melhor do que estar sozinho.” “Numa família numerosa, as dores, os sofrimentos e as tristezas que acontecem a um, cada um dos outros leva um bocadinho dessa dor e ajuda a suavizar; as alegrias cada um celebra à sua maneira, uma coisinha simples torna-se uma festa. Uma divide-se a outra multiplica-se. É essa experiência que nós queremos replicar”, explica.
Mas, em Lisboa, não é fácil encontrar um espaço. “Não é fácil pôr toda a gente de acordo, ministérios da Cultura, das Finanças, todos estão de acordo mas nem todos colaboram para encontrar uma solução. Alguma coisa há de haver, não temos pressa”, sinaliza João. “Gostávamos de partilhar com os nossos porque achamos que não somos portugueses por acaso”, acrescenta Maria. “Lisboa foi a dada altura da história do mundo o centro pivotal de uma maneira nova de ver as coisas, de nos relacionarmos — haja em vista a tapeçaria que já vimos –, de aceitarmos as nossas diferenças sem perdermos a nossa identidade. Acreditamos que no mundo global, a nossa maneira de estar é uma belíssima contribuição para a paz, para o entendimento, para a construção de uma sociedade onde as pessoas se respeitem, não querendo uniformizar toda a gente, pois ganhámos a liberdade de cada um ser como quer. Acreditamos que os portugueses têm uma maneira muito boa de estar no mundo. Se dermos outra vez aos portugueses esse protagonismo, e se o dermos à sua capital, é uma contribuição para o mundo inteiro”, considera Maria Cortez de Lobão.
A anterior gestão da Câmara Municipal de Lisboa ofereceu à Fundação Gaudium Magnum a antiga casa dos Marqueses de Pombal, mas acabou por entregá-la em protocolo ao projeto de uma biblioteca do argentino Alberto Manguel, contam. Gostavam de ajudar o Estado a recuperar algum espaço ao qual dessem não só uso, mas também assumissem a manutenção. “Parece-nos mais lógico do que fazer tudo sozinhos, o nosso ADN está em construir pontes. Por isso temos estado à espera e temos proposto. Poder trabalhar em conjunto é dar um bom testemunho”, esclarecem-nos também.
“Este é um dos meus preferidos, é um Nosadella, de seu nome Giovanni Francesco Bezzi. É absolutamente extraordinário como este quadro tem este movimento, esta dinâmica, esta vivacidade.” Maria mostra uma das mais bonitas pinturas que tem em casa. “Nem só de pão vive o homem, nós precisamos de descodificadores para a nossa vida e se descuramos a cultura tudo se torna cinzento, nada tem significado, nada tem descodificador. A cultura dá-nos instrumentos para decidirmos os caminhos que queremos trilhar, quando não temos esses instrumentos perdemo-nos como sociedade, individualmente. O legado que nos é deixado por outros que já caminharam antes de nós, é precioso nas suas vitórias e nos seus sucessos, como nos seus erros e naquilo que são as suas derrotas. Não estamos sozinhos, a Cultura diz isso”, continua, explicando: “Aqui temos o primeiro pintor português que assina, Álvaro Pires de Évora, 1411. Este quadro esteve na exposição do MNAA dedicada ao artista. É um pintor absolutamente fenomenal, é o princípio da pintura fora dos frescos, dos fundos de ouro, em madeira, ou para acrescentar a uma capela ou para devoção própria”. “Aqui está um Hans Holbein. O retrato é o de Alice More, a segunda mulher de Thomas More. Na Wikipedia é este quadro nosso que aparece, quando se procura Alice More. Este é o único que existe no mundo.” É a vez de João Cortez de Lobão. “Tem graça que este tem por baixo uma pintura do Erasmus que era amigo do Holbein. Trata-se do aproveitamento das tábuas, que tinham que ser preparadas, a madeira é orgânica, é por isso que muitos deles estão um bocadinho abaulados.”
Ali, está um Van Dyck (1599-1641) muito novo, com vinte e poucos anos. Pintou a família do Cornelis de Vos, que era também um pintor da mesma época, e eram amigos, tanto um como outro têm muitos quadros no Wallace Collection. “Este é um quadro que tem imensas particularidades, primeiro é quadrado e confirma-se que a tela era assim e que não foi cortada, o que quer dizer que o Van Dyck fez de propósito, o que já é uma ousadia, para cortar o chapéu. Isto é o quadro de um grande pintor para um pintor seu amigo. O pai abraça toda a família, a mãe daquele lado, as duas crianças deste; a mãe está muito serena na sua condição de mulher, de esposa e de mãe; as crianças têm uma vivacidade fabulosa; o encarnado nas joias da mulher também para mostrar que era pintor mas que não estava mal na vida; nesta época os pintores quando tinham encomendas podiam ser muito procurados; tem este empasto, como dizem os peritos e agente vai aprendendo, a tinta é deixada quase em bruto; ele tem o traço seguríssimo e onde se centra é nas feições e nesta sensação de movimento…” Maria lança-se na história de cada obra com a emoção de a estar a descobrir a cada momento, pelo menos, de a dar a conhecer a quem por ela se interesse. E é inevitável. Acontece. “O presidente da Sotheby’s quis falar connosco e disse: ‘este foi dos melhores Van Dyck que passaram pelos meus olhos’. Este quadro foi nacionalizado pelo ministro da Cultura do Hitler para fazer parte da sua coleção. Evidentemente, depois da Guerra conseguiram recuperá-lo e foi para o Museu de Telavive, de lá voltou para Londres, onde o fomos buscar”, relata ainda João Cortez de Lobão. “Todos os quadros que temos contam uma história, gostamos evidentemente da qualidade mas também tem que contar uma história, tem que nos dar um ensinamento, nada é estático”, remata Maria.
Pelo meio de tanta antiguidade, porém, lugar aos mais novos. Um Sousa Lopes notável, de 1933, o Estudo Preparatório para a Alfândega, de Almada Negreiros, uma belíssima Vieira da Silva, dois Malhoa impressionantes, como a “Velha”, que o próprio considera ser o seu melhor quadro, conforme escreve em carta também propriedade dos Cortez de Lobão, e muitos outros apontamentos.
“Há quadros desta qualidade a circular mas são caros. Ainda há possibilidades de se fazer boas coleções, sim. O próximo leilão da Sotheby’s é uma coleção notável que tem umas 20 ou 30 pinturas que qualquer delas não me importava nada que o MNAA as tivesse em exposição”, reintroduz Joaquim Caetano. O diretor do MNAA sabe que a coleção da Fundação Gaudium Magnum é preciosa e que tem aumentado bastantes vezes. “Conheci a Maria e o João quando preparávamos a exposição da Josefa de Óbidos, em 2015.
Eles têm uma das melhores peças da Josefa de Óbidos, o ‘Menino Jesus Peregrino’, num ótimo estado de conservação, era da coleção do D. Caetano de Portugal, era uma peça muito importante no conjunto de pinturas da artista”, conta também.
“Este é uma Élisabeth Louise Vigée Le Brun, que era casada com o sr. Le Brun que também era pintor, mas que foi a pintora oficial da rainha Maria Antonieta. Foi admitida na Academia de Belas-Artes, caso raro entre as mulheres, e foi um escândalo porque ela pintou a rainha com um vestido de verão, de campo, que a rainha adorava, tanto é que fez o Petit Trianon. Mas a Le Brun teve mesmo que retirar o quadro porque foi considerado demasiado informal. Quase todos os quadros que se conhecem de Maria Antonieta foi ela quem os pintou”, a visita continua orientada por Maria. “Este é um autorretrato dela vestida com a sua fatiota de pintora, está na moldura original, que foi ela que escolheu e que tem os atributos da pintura em cima. Isto é ela a dizer: eu sou uma grande pintora, além disso, sou uma mulher muito bonita, eis-me! Uma pessoa que está muito segura de si. Olhámos para ela e depois foi uma desgraça!”
A grande constatação, diz-nos Maria, é que todos nós, à nossa maneira, e com aquilo que temos ou de dons, ou de talentos ou de características humanas, “tentamos responder às três grandes perguntas da vida: quem sou, de onde venho, para onde vou? Essas interrogações, essa força e essa dinâmica têm movido aquilo que fazemos”.
É por isso que a Fundação Gaudium Magnum é uma sequência lógica da forma como encaram o mundo. “Nasceu para organizarmos algumas coisas que já fazíamos em termos pessoais, a empresa, ou cada um de nós, ou enquanto casal. Reorganizámos tudo para a fundação, que assenta em quatro pernas: beneficência, educação, investigação e Cultura”, explicam.
“A beneficência são os apoios que já damos sobretudo na zona do Alentejo e que estão ligados à empresa de agricultura, é o azeite que damos aos lares de terceira idade, às creches, às Caritas locais, às paróquias, donativos e apoios às várias instituições. A educação são as bolsas de estudo que estamos a dar, 16 por ano para estudantes que queiram estar num colégio privado de matriz cristã e que não tenham possibilidades financeiras. Pedimos-lhes que apresentem um trabalho que é solicitado a partir de dois ou três temas escolhidos, temas que têm a ver com Portugal e a portugalidade, como se defende o interesse de Portugal numa grande instituição internacional, uma coisa que não possa ser googlada, para os ajudar a pensar a longo prazo, que os jovens são ótimos nisso se são estimulados para o fazer. A investigação está neste momento a apoiar um projeto no Vaticano. Descobrimos, nos Estados Unidos, os manuscritos das homilias de São Bernardino de Siena, que foi o grande conversor da Itália, diz-se que ele chegava a ter 30 mil pessoas a ouvi-lo. São as homilias da Quaresma. O Vaticano não as tinha. Falámos então com o cardeal Tolentino e arranjamos maneira desses documentos irem para Paris e os estudiosos irem ver se eram verdadeiros. Disseram-nos que as homilias eram uma coisa raríssima, notável, e que se arranjássemos um patrocinador que pudesse levá-las para o Vaticano para poderem ser estudadas, seria fantástico. Pensámos fazer um fund raising mas acabámos por negociar com o galerista e foi a fundação que comprou e ofereceu ao Santo Padre e à Biblioteca Vaticana. Agora, a fundação está a patrocinar o levantamento e o estudo de tudo o que sejam textos que tenham a ver com Portugal e não têm que ser eclesiásticos, há textos científicos, literários, matemáticos que foram oferecidos aos vários papas e que para lá ficaram. É um autêntico oceano de documentos que temos que começar a organizar. São 900 anos de relações históricas, restauro também, livros em risco, está-se a fazer uma seleção. A ideia é ao fim de um ano a equipa que está a trabalhar fazer uma apresentação em Portugal das coisas que descobriu, recuperar a história de Portugal que está lá perdida. Se já tivéssemos um centro da fundação nessa altura era ótimo podermos fazer lá, senão havemos de pedir para nos emprestarem ou alugarem um espaço”, avançam os dois.
Só a ignorância deixará que o belo deixe de salvar o mundo, ao contrário do que diz Dostoievski, que Maria sempre cita. Só a ignorância permitirá que a coleção se mantenha “escondida” e só para usufruto da família e dos amigos. Só a ignorância recusará este apelo à partilha.